Interrogação em mim

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Nem sempre eu falo a verdade por aqui. Em outras palavras: se você vem aqui para saber se estou feliz ou triste, realizada ou deprimida, errou de endereço. Já falei inúmeras vezes que vida e arte se misturam, se fundem, se unem. Na realidade, elas brincam de pega-pega. Às vezes, uma ganha. E vice-versa (e assim a gente segue na batalha).

Claro que quem escreve se posiciona, se expõe, tira a roupa. Mas também se esconde, finge um pouco, joga. Sim, a gente joga muito com as palavras. A gente fica atrás das linhas observando os problemas passarem (e irem para bem longe). A gente tropeça em um verbo e cai de boca no chão. Juntar os caquinhos para um escritor significa juntar uma letra com a outra e ver no que dá. Nem sempre sai coisa que preste, mas o intuito, o objetivo é fazer acontecer alguma coisa aí dentro de você, que lê.

Por que tantos rodeios? É que hoje não vou pegar nenhum personagem emprestado. Hoje não vou buscar um eu guardado em algum quarto escuro. Não vou exagerar, a não ser meu exagero costumeiro. Não vou fazer drama, a não ser meu drama diário. Hoje vou tirar a roupa para você. Por favor, apague a luz, vamos criar um clima. Se tiver uma biritinha, me dá um gole, assim eu me solto mais fácil.

Foi assim, sem roupa, que eu descobri um nódulo no seio esquerdo. Semana passada, fui ao ginecologista. Consulta de rotina, exames de rotina, você sabe como é. Se você é homem e não sabe, preste atenção: a gente chega no consultório, conversa, conversa mais um pouco, o gineco diz "a última vez que você veio aqui foi....", a gente conversa mais e ele diz "vamos ali na outra sala?". Assim, um convite casual, um convite para tirar a roupa e colocar aquela camisolinha ridícula com abertura atrás. Então, a gente deita em uma cama, bem na beiradinha, levanta uma perna e deixa apoiada num negócio, levanta a outra e deixa apoiada no outro negócio e, pronto, você ficou de pernas abertas, exposta para o mundo e para o olhar curioso do médico. Depois, ele vem como se fosse a coisa mais normal do mundo (e é), puxa seu braço para fora da camisola, levanta, apalpa seu seio, puxa conversa para deixar você livre, leve e solta, devolve o braço, vai para o outro lado, apalpa seu outro seio, continua puxando conversa e fica ali mais um tempo. Então ele vai para os países baixos. Mas meu negócio foi em cima.

No meu caso, ele estava conversando sobre o feriado de Páscoa, disse que tinha ido para Bombinhas. Perguntou pela minha mãe e blablabla. Deu a apalpada básica, devolveu o braço. Foi para o outro lado. E foi aí que senti um arrepio percorrendo toda a espinha. Entre uma conversa e outra, vi que ele começou a disfarçar. E voltava para o mesmo ponto do seio, como se quisesse se certificar de algo. Ele, tão querido, estava sério. Ergueu a sobrancelha e junto com ela meu coração deu uma batida mais rápida. "Clarissa, vamos fazer um examezinho pra ver melhor essa parte aqui". E foi pra baixo. Fez o que tinha que fazer, examinou, coisa e tal, tal e coisa e eu disse "Que foi? Me explica direito". E daí veio a frase que eu não queria ouvir "é que achei um nódulo, um carocinho no teu seio. Acho que não é nada, mas vamos fazer uma eco pra ter certeza." Eu devo ter ficado mais branca que a minha brancura de nascença, pois ele disse "Não vai ser nada, não, mas vamos fazer, pois se for..."

O problema é o se for, se é que você me entende. Eu sei, sei que tem muita gente sofrendo nesse mundo, eu tenho uma vida ótima, tenho uma família ótima, tenho tudo ótimo e vai ficar tudo ótimo. Sei que é até pecado pensar em besteira, sai pra lá pessimismo! Mas, olha, quando o médico diz que achou um nódulo no seu seio somente uma palavra chega a jato na cabeça e martela feito louca: câncer. Câncer de mama. Retirada de nódulo. Biópsia. Perda do seio. Radioterapia. Quimioterapia. Perda de cabelos. Sei que é futilidade pensar nessas coisas, pode me bater na cara, mas tenho esse lado fútil, me desculpa, mas duvido que você não pense assim. Conheço muita gente que teve câncer, que lutou contra essa doença maldita e teve uma força filha da puta, uma força animal, uma força violenta. Mas me dá licença só agora, só nesse minuto, eu preciso ser fútil nesse momento: estou com medo. E o medo faz a gente pensar merda. Faz a cabeça viajar e ir até a loja de perucas mais próxima e pensar: será que tem alguma que combina com a cor da minha pele?

Sabe, minha mãe já teve câncer. Foi na boca. Ela fuma. Fuma muito (vê se para, mãe!). Então surgiu uma feridinha no lábio inferior dela. Não curava nunca. Ela tirou. Era câncer. Não teve que fazer quimio, radio, nada, ainda bem! Mas quando ela descobriu, nunca esquecerei aquele dia, eu chorava alucinadamente no meu quarto, escondida dela, afinal, eu tinha que ser forte, ela entrou e disse minha-filha-eu-não-vou-morrer. E completou: "se eu tiver que usar peruca vamos comprar umas bem bonitas". E a gente se abraçou, entre lágrimas e sorrisos e eu lembro de ter pensado: só a minha mãe pra falar uma coisa dessas nessa hora. Na época de toda essa confusão, dei uma boneca muito lindinha pra ela, de madeira com cabelinhos de lã. Sabe como ela batizou a boneca? Maria Câncerzinho. Como eu disse, só mesmo a minha mãe. Ela ficou ótima. Eu superei o medo.

Acho que qualquer mulher fica bem nervosa quando descobre um nódulo, ainda mais quando não tem maiores notícias. Largam uma bomba na sua mão: é um nódulo, te vira. Mais pra frente a gente descobre o que é. Mas e enquanto a bomba está na sua mão, o que você faz? Joga pra cima? Se abraça na porra da bomba? Finge que não tá havendo nada? Bom, o que eu posso dizer é que desde quarta-feira isso não sai da minha cabeça. Meu sono está estranho, não consigo me concentrar direito na agência, não consigo escrever direito, meu pensamento vai e vem e eu penso meu Deus, tenho tanta coisa pra viver ainda, tenho minha família, minha cachorra, minha casa, meus sonhos, meus livros, meu amor, meus sobrinhos, meu pai, mãe, irmão, cunhada, amigos, tenho umas contas pra pagar, tenho a filha que quero ter e nem tive ainda, meu Deus, tomara que seja só uma glândula, um nódulo do bem, um cisto legalzinho. Uma coisa boa. Por favor, me manda uma coisa boa. Só o que peço.

Por enquanto, fico aqui com esse aperto na garganta e essa sensação de interrogação no peito (esquerdo, no caso). Torce por mim.
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